Como a liberdade de expressão dentro da PM pode reduzir a violência?
No Conselho de Direitos Humanos de 2017, além dos documentos fundamentais, como o "Guia de Estudos", "Guia de Regras" e "Dossiês", os senhores terão acesso a outras fontes de informação. Postaremos aqui no blog uma série de arquivos extras, aos quais dá-se o nome de "Documentos Complementares". No entanto, sintam-se a vontade em pesquisar em outros locais, desde que alinhem a linha de raciocínio as diretrizes contidas no Guia de Estudos e demais dados disponibilizados pela equipe CDH 2017. Sendo assim, daremos início a postagem destes arquivos complementares através de uma interessante reportagem do "Jornal Nexo". Apesar de relatar uma situação ocorrida no Brasil, essa informação, de certa forma, esboça circunstâncias vividas em outras nações presentes na nossa reunião. Por isso, a leitura é muito atrativa.
Fonte: Imagem retirada da internet*
*Imagem meramente ilustrativa
Obs.: Créditos da reportagem ao Jornal Nexo, bem como ao jornalista Caio do Valle.
Por Caio do Valle, Jornal Nexo - 09/03/2017.
O Brasil convive com ações graves e questionáveis envolvendo as suas polícias militares — entidades de segurança de responsabilidade de cada uma das 27 unidades federativas do país.
Ainda assim, seja em episódios extremos, como o massacre do Carandiru, em São Paulo, seja em práticas diluídas (resultando, por exemplo, nas mais de 23 mil mortes de jovens negros a cada ano), a conduta dessas corporações enseja poucas críticas e análises internas.
Segundo a ONG Human Rights Watch, que apresentou nesta quinta-feira (9) um relatório sobre o tema, isso acontece porque oficiais e praças estão submetidos a um rígido sistema legal de cerceamento à liberdade de expressão. O documento sustenta que dar voz aos subordinados que trabalham nessas corporações leva a reavaliações de procedimentos e pode resultar na redução da violência.
Dessa forma, o procedimento da PM com bombas de gás lacrimogêneo ou balas de borracha em manifestações, por exemplo, poderia ser modificado caso os policiais envolvidos fossem consultados e eventualmente divergissem da prática.
Maria Laura Canineu, diretora do escritório brasileiro da ONG, explica ao Nexo que há três mensagens principais que podem ser extraídas do relatório. São elas:
O Brasil, que chegou ao índice “perigoso” de 60 mil homicídios por ano (32,4 homicídios para cada 100 mil pessoas, a nona maior taxa do continente) precisa recorrer a outras formas de fazer segurança pública.
A legislação e os códigos “retrógrados” que disciplinam a atividade dos policiais devem ser reformados, para que haja clareza sobre os limites de sua liberdade de expressão.
As polícias militares, atualmente, não têm mecanismos próprios para discutir com mais profundidade questões de trabalho, além de denúncias internas.
Para os pesquisadores, as punições “excessivamente severas” a agentes que questionam determinadas abordagens — que incluem expulsão da polícia e até detenção — “têm um grave efeito inibidor em outros membros da força, que frequentemente se abstêm de expressar sugestões ou opiniões sobre reformas da polícia por medo de represálias”.
Direito a falar e a opinar
Se os policiais militares, que estão na linha de frente da segurança pública por realizarem trabalhos ostensivos na rua, não têm o direito de se expressar sobre a sua atividade e de propor mudanças, qualquer reforma da segurança será ineficiente. Essa é a interpretação de Canineu acerca do emaranhado de restrições que hoje cala esses agentes públicos. “Se eles não podem participar do debate, o que estamos discutindo?”, questiona a pesquisadora.
Quais são as restrições
Embora os 436 mil policiais militares brasileiros na ativa respondam administrativamente ao governo do Estado em que servem, também vinculam-se ao Exército, pois são considerados integrantes das forças de reserva.
Por essa razão, eles estão sujeitos à legislação que orienta a conduta das Forças Armadas. O Código Militar Penal vigente, criado em 1969, em plena ditadura militar, é enfático sobre os limites ao direito dos militares de externar opiniões e julgamentos:
Artigo 155: Estabelece que “desobediência” e “indisciplina” podem levar a reclusão de dois a quatro anos;
Artigo 163: Institui que “promover a reunião de militares, ou nela tomar parte, para discussão de ato de superior ou assunto atinente à disciplina militar” dá detenção de até um ano;
Artigo 166: Prevê que criticar “publicamente ato de seu superior ou assunto atinente à disciplina militar, ou a qualquer resolução do governo” resulta em pena de detenção de dois meses a um ano.
Além dessa normativa federal, existem códigos disciplinares estaduais que estipulam regras para a PM de cada unidade federativa (Brigada Militar, no caso do Rio Grande do Sul). No Estado de São Paulo, que possui o maior contingente de policiais militares do Brasil — em torno de 100 mil pessoas —, o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, de 2001, estipula como transgressões disciplinares graves situações como:
“publicar, divulgar ou contribuir para a divulgação irrestrita de fatos, documentos ou assuntos (…) que possam concorrer para o desprestígio da Polícia Militar”;
“não cumprir, sem justo motivo, a execução de qualquer ordem legal recebida”; “recriminar ato legal de superior ou procurar desconsiderá-lo”.
Clareza sobre os limites à liberdade de expressão
Como lidam com a segurança pública e com estratégias de prevenção de crimes, os agentes devem ter cautela sobre o que divulgam no que tange a planos e políticas da área. Canineu avalia que eles não podem ficar impedidos de expor as suas próprias dúvidas e interpretações a respeito do sistema em que trabalham.
Sobre o código disciplinar de São Paulo, a especialista questiona o que seria exatamente publicar ou divulgar assuntos que possam levar ao “desprestígio” da PM. “O que é desprestígio? Se um policial denuncia um colega por um crime ou um abuso, isso não pode ser interpretado como um desprestígio à corporação? No limite, ele poderia ser punido por isso.”
A “mordaça” é tão mais preocupante pois incide justo sobre quem faz o policiamento ostensivo, uma atividade que no Brasil compete à PM, embora seja de natureza eminentemente civil. Ou seja, os profissionais que lidam cotidianamente com as ruas têm reduzida margem para questionar condutas que considerem ineficazes ou erradas.
Casos de punições a agentes que se manifestaram
A Human Rights Watch compilou informações sobre policiais militares brasileiros que foram punidos por expressarem suas opiniões a respeito das instituições em que trabalham. Segundo a ONG, as penas foram “desproporcionais” aos atos que praticaram.
De acordo com o relatório, em 2008 o policial Darlan Abrantes, do Ceará, publicou um livro em que critica a estrutura da PM, na qual “ao policial de baixa patente não é permitido pensar”.
Ele também defende que tornar a instituição civil a aproximaria mais da população, o que reduziria a criminalidade. Em 2014, o comando geral da PM cearense o expulsou sob a alegação de que a publicação continha “graves ofensas” e que Abrantes havia demonstrado “total indisciplina e insubordinação”.
Na Justiça militar, ele foi condenado a dois anos de reclusão, mas a pena foi suspensa desde que ele se comprometesse a “não voltar a delinquir, não ingerir bebidas alcoólicas, não frequentar casas de jogos ou tavolagem, não portar armas de fogo ou armas brancas e comparecer ao tribunal uma vez por mês”.
No Pará, o PM Luiz Fernando Passinho afirmou à ONG que tem sido perseguido pelo comando da polícia porque, em setembro de 2014, disse em um microfone durante o ato do “Grito dos Excluídos”, que “durante seus treinamentos, bombeiros e policiais militares escutam que não têm direitos”.
Segundo a Human Rights Watch, o comandante-geral interpretou que Passinho “atentou contra a disciplina e a hierarquia militar ao se manifestar de modo a colocar no seio dos quartéis a discórdia e a desmoralização contra seus superiores”.
O relatório diz que o comandante “ordenou a detenção de Luiz Fernando por 30 dias em outubro de 2016. Luiz Fernando apelou da decisão ao mesmo comandante que a ordenou, conforme procedimento previsto pelo código disciplinar estadual”.
Em setembro do ano passado, os superiores ordenaram a sua detenção “por não ter usado chapéu enquanto estava com o uniforme”, punição “normalmente punida com uma advertência”.
No Congresso, já existem propostas para apartar a PM do Exército, eliminando as detenções administrativas. De acordo com o relatório da Human Rights Watch, essas reformas “resultariam em um policiamento mais efetivo e responsável perante a sociedade”. Entre as proposições, existem as que defendem a desmilitarização da polícia e as que preveem alterações nos códigos disciplinares.
O que pensa um policial militar
Na avaliação do policial militar da reserva Jason Maurício Santos, secretário-geral da AOPP (Associação dos oficiais, praças e pensionistas da Polícia Militar do Estado de São Paulo), os agentes já têm, hoje, condições de pleitear mudanças internamente. De acordo com ele, a Polícia Militar é uma instituição que já dá acesso “aos subordinados de todos os círculos” para que possam apresentar sugestões ou fazer alguma solicitação.
“Obviamente, afrontar a legislação e os códigos de conduta não é permitido. Quando o policial ingressa na carreira, durante o período de treinamento para a formação técnica e profissional, recebe essas informações e faz um juramento de cumprir as ordens recebidas das autoridades mesmo que seja com o sacrifício da própria vida”
Jason Maurício Santos, Secretário-geral da associação dos oficiais, praças e pensionistas da PM de São Paulo*.
*As entidades de classe, como a AOPP, embora não sejam sindicatos (já que a lei proíbe que militares se sindicalizem e participem de greves), também servem para levar demandas dos subordinados às autoridades de segurança pública.
Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/03/09/Como-a-liberdade-de-express%C3%A3o-dentro-da-PM-pode-reduzir-a-viol%C3%AAncia-segundo-esta-ONG
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